quarta-feira, 8 de maio de 2013

“Sombras sobre Tombstone”. Jean Giraud e o novo western. Entrevista

"Ombres sur Tombstone", prancha 1.


“Sombras sobre Tombstone”


Jean Giraud e
o novo western


Entrevista


Como nasceu esse novo Blueberry?

Temos de recuar aos meados da década de 80 para compreender. Nessa época, produtores norte-americanos sugeriram-nos, a Charlier e a mim, uma proposta de adaptação de “Blueberry” perfeitamente grotesca: o nosso herói bem-amado perdia o braço direito e era “artilhado” com prótese absurda, capaz de cuspir fogo e de outros “malabarismos”... ...uma espécie de “James Bond” do século XIX... No fundo, por que não?... Mas nunca com “Blueberry”.

Reagi, escrevendo uma outra versão que aproveitava a ideia, sem a amputação, mas com novos personagens e possibilidades de desenvolvimento. Foi essa sequência um pouco ambígua e isolada que, depois de trabalhada, se tornou a história de “Marshal Blueberry”.

Mais tarde, incentivado pelo prazer que sentira ao escrevê-la, lancei-me em um projeto mais ambicioso, sempre com o objetivo de cativar os novos produtores norte-americanos, que despontavam no horizonte. É claro que eles nunca o souberam, mas aquela história agradava-me muito. Continha muitas sequências oníricas e uma magia índia delirante que mergulhava Blueberry em um verdadeiro pesadelo. Por outro lado, mostrava um tenente “encharcado” de uísque, insubmisso e suicida, um pouco o personagem de Dundee no belo filme de Peckimpah.

A minha ideia inicial consistia em reescrever a história de uma maneira mais adulta e mais estranha do que em “Forte Navajo”. No entanto, aconselhado por J. M. Lofficier, decidi situá-la em uma época ligeiramente anterior. Foi também ele quem teve a ideia de mudar-lhe o nome para “Forte Mescaleros”.


Mas, qual é a relação entre esse argumento cinematográfico e “Sombras sobre Tombstone”?

Nenhuma, claro!... Esse argumento era inexequível... Eu não podia recomeçar a série do zero... A não ser que Blueberry se encontrasse inutilizado de alguma maneira, que um jornalista insistisse em arrancar-lhe confidências e que, precisamente, o passado ressurgisse sob os traços de um célebre renegado apache.


Mas, porque essa vontade de mostrar um Blueberry ferido, deprimido, passivo e até alcoólico?

Talvez se trate de um simples fenômeno de projeção (à exceção, talvez, do alcoolismo, que não faz parte da minha problemática). Talvez esteja na lógica do personagem que herdei de J. M. Charlier. É provável que estes dois aspectos se fundam inconscientemente.

Além disso, tudo o que possa tirar os personagens da mecânica fatal da HQ de aventuras tradicional parece-me bem-vindo. Trata-se, aliás, de uma tendência geral. À falta de opções verdadeiramente revolucionárias, toda mundo faz o possível por escapar a uma certa rotina conformista, embora respeitando as leis do gênero, o que obriga a grandes “acrobacias”.


"Ombres sur Tombstone", prancha 2.


Considera o novo Blueberry mais adulto?

Por mais genial que fosse, Charlier trabalhava em um contexto que tem tendência para apagar-se com o tempo. A História em Quadrinhos dos anos 90 afasta-se implacavelmente da revolução dos anos 70.

Dizer que ela é mais adulta é uma evidência, o que não significa que seja mais talentosa, nem mais interessante. Porém, surgem novos temas, como a sexualidade explícita do personagem, que o próprio Charlier já abordara em “Arizona Love”.

Por outro lado, o gênero “western” já não possui a legitimidade de outrora, o que se traduz por uma perda de ingenuidade, uma “torção” dos temas (uma história em quadrinhos não lembra nada a você?), bem como um maior realismo psicológico e implicações políticas, sociais e históricas mais documentadas.


Contudo, um “western” europeu já é algo de original, não?

Nem por isso... O leitor não se interessa mais pela “nacionalidade” de uma série, sobretudo no gênero “western”, onde todo o trabalho consiste em fazer crer que estamos, de fato, nos Estados Unidos, no século XIX... Nunca esquecerei o comentário de um artista inglês que vi, há tempos, folheando um álbum de “Blueberry”: “Isto é muito francês!”.

É óbvio que fiquei um pouco “picado”, mas ele poderia ter acrescentado: “Isto é muito anos 70”. A tentativa de escapar a este tipo de fatalidade é, certamente, apreciável, mas definitivamente desesperada.


O que tem “Sombras sobre Tombstone” a ver com tudo isso?

Trata-se, precisamente, da mistura de tudo isso: a herança preciosa de J. M. Charlier, a minha problemática pessoal, a minha percepção das exigências da época e, claro, a alquimia misteriosa do “acaso”, que leva a história por caminhos sempre inesperados.

Por exemplo, é verdade que o fato de ter visto o filme de Cosmatos, “Tombstone”, com Kurt Russel e Val Kilmer, me entusiasmou. Fiquei indignado com a indiferença da crítica e isso me influenciou na escolha do tema.

No entanto, a estrutura da narrativa e o tratamento da história demarcam-se do filme. Submeto-me, sobretudo, à abordagem hollywoodiana do caso O. K. Corral, que sempre privilegiou o aspecto fictício à verdade histórica.


E a história dupla?


Conforme expliquei anteriormente, trata-se da imbricação entre o argumento do filme “Forte Mescaleros” e o filme de Cosmatos.


"Ombres sur Tombstone", prancha 3.


E o aspecto onírico?... A magia índia?

Quanto a isso, hesito bastante... Os leitores de “Blueberry” são bastante heterogêneos... Uma pequena parte são “ativistas” da ortodoxia “westerniana”, para não falar dos guardiões da chama J. M. Charlier (aliás, muitas vezes, são os mesmos!). Não quero entristecê-los. Todavia, por outro lado, não me agrada prescindir de uma dimensão que considero essencial (quero dizer, cheia de divertimento e animação!). Tudo estará em jogo no próximo álbum, que anda às voltas na minha cabeça há bastante tempo.

Além disso, “Blueberry 1900”, a série que tenciono realizar com François Boucq, logo após a conclusão de “Marshal Blueberry”, talvez venha a abordar todo esse aspecto fantástico (se Deus der vida ao projeto).


Um Blueberry místico?

Não, místico não... A palavra possui demasiadas conotações cristãs. O xamanismo é mais um corpus de técnicas de alteração ou de deslocação da consciência, de acumulação de energia, com vista a um mergulho sob a superfície do espelho. As consequências de tal concepção não são inocentes, pois, salientando as técnicas, subentende-se a realidade total do mundo invisível como um “território” finalmente acessível.

Admito que introduzir Blueberry nesta transgressão quase sacrílega, representa um risco e que os guardiões da normalidade racional não deixarão de “subir pelas paredes”.


Charlier, no entanto, fez intervir feiticeiros em alguns episódios.

Feiticeiros, por vezes, mas feitiçaria muito raramente, à exceção talvez de “A Tribo Fantasma”. O episódio do nevoeiro, provocado pelos xamãs e o seu concerto de batuques, é verdadeiramente alucinante sob a sua aparência anódina. Como?... Desde quando as condições meteorológicas obedecem a um bando de exaltados?! Felizmente, a ambiguidade instala-se rapidamente na mente do leitor. Trata-se apenas de uma coincidência!... Como sempre!...

Mas é verdade que a leitura mágica do mundo é uma caixa de Pandora. É preciso saber fechar a tampa, sob pena de ver a realidade desagregar-se até ao absurdo.


Em todo caso, seria uma ruptura total com Charlier, não?


Nem por isso! Blueberry continua presente, fiel à tradição da aventura, mas os tempos mudam, não só na próxima história, mas também no mundo real... O próximo “Blueberry” será editado por volta do ano 2000! Ainda há pouco tempo, esta simples afirmação mergulhava-nos nas delícias inconfessáveis da ficção científica.


"Ombres sur Tombstone", prancha 4.


Matou ou fez sofrer muita gente em “Blueberry”. Ele, em contrapartida, parece nada sentir.

Pensei, durante muito tempo, que matar um personagem cativante era o fim do fim na dramaturgia da HQ e, no fundo, ainda penso o mesmo... O problema é que Blueberry é imortal, pelo menos até à data da sua morte oficialmente anunciada há alguns anos por Charlier (Blueberry morre quase centenário!).

É evidente que a morte eventual de Mc Clure ou Red Neck seria um acontecimento bastante explosivo no contexto da série. Porém, tranquilizo desde já o leitor. Não tenho essa intenção. Pelo menos, por enquanto.


Então, Blueberry é um personagem “condicionado”?

É verdade!... Mas é uma tradição na HQ de aventuras: o herói tem de ser intrépido, e Blueberry não é exceção. No entanto, ele evolui... Por exemplo, não há muitos heróis que envelheçam (em “Blueberry 1900”, ele terá 56 anos. Em um episódio de “Los Gringos”, não estava longe dos 70!).


Blueberry não é apenas “condicionado”, é depressivo.

Não. Blueberry não é depressivo, é deprimido... Além disso, para deixar de ser “condicionado”, é preciso primeiro ficar deprimido. È uma lei antiga, que data de Orfeu, e Blueberry não foge à regra.


O título “Sombras sobre Tombstone” não é a imagem dessa depressão de Blueberry?

Não me tinha lembrado disso... Para mim, as “sombras” representam o regresso do passado (Gerônimo). Quanto a Tombstone, é simplesmente a cidade de O.K. Corral. Mas, na realidade, é também a imagem da depressão sempre associada ao passado... É ainda uma alusão totalmente involuntária ao luto doloroso de Blueberry, que perdeu o pai (Charlier), mas é assombrado pelo seu fantasma (as sombras) na prisão de sua pedra tumular (Tombstone). É também o lugar secreto onde tentamos enterrar a nossa dor...


As respostas estarão no próximo álbum?

Como é de regra e quanto mais cedo melhor... Blueberry reencontrará a via real da aventura e da ação?


O suspense é insuportável?

É, não é?... E é um grande desafio, pois, se a resposta a toda essa preparação for demasiado débil, terei dificuldade em recuperar a minha credibilidade como roteirista de HQ.


"Ombres sur Tombstone", prancha 5.


Talvez precise de um colaborador.

Talvez!... No entanto, vou levar a aventura o mais longe possível... Tenho de desvendar o mistério Blueberry.


Sentia-se defraudado dessa responsabilidade no tempo de Charlier?

Um pouco... Ou, melhor dizendo, às vezes, pois, no conjunto, na qualidade de primeiro leitor da história, sentia-me mais do que realizado. Além disso, tratou-se de um período de aprendizagem formidável. Cada vez mais me apercebo disso, para não falar do aspecto de “patrocinador” que Blueberry assumiu em relação a todo o meu trabalho assinado por Mœbius. Foi apenas pouco a pouco que Mœbius alargou o seu território até englobar quase tudo.


Então, Blueberry está ameaçado?

Claro que não. Mas é verdade que Mœbius tem tendência para englobar tudo... Nos Estados Unidos da América a série é assinada por Mœbius por motivos de comodidade comercial, mais isso é um sinal, não é?


Portanto, você não é o guardião do templo?

De modo nenhum!... Enquanto viver, continuarei a servir o personagem, a acompanhá-lo na sua evolução, nas suas andanças, nas suas quedas, nas suas aventuras, e isto, espero-o, até o seu fim...


É triste!

Nada disso. Os heróis nunca morrem!... A sua vida, depois de contada, pode revelar-nos mil facetas em mil aventuras. Outros se encarregarão disso, outros roteiristas, outros desenhistas... Blueberry não é Tintin. A aventura continua!

Fonte:La Lettre”, Dargaud Éditeur, em “Selecções BD” N° 2, 2ª série. Meribérica, Lisboa, Portugal, dezembro de 1998.

N. C.:

1) As imagens, extraídas do álbum “Ombres sur Tombstone” (Charlier e Giraud, Dargaud, 1997) não constam da matéria da editora portuguesa, a qual utilizou outras do mesmo álbum.

2) “Blueberry 1900”, mostrando um Blueberry cinquentão, tomando alucinógenos, não foi adiante porque Phillippe Charlier, filho e herdeiro dos direitos autorais de Jean-Michel Charlier, discordou da proposta do projeto, cujo foi cancelado.


"Blueberry" Nº 25 "Ombres sur Tombstone".


“Blueberry” Nº 25 “Ombres sur Tombstone”
Roteiro e desenhos: Jean Giraud
Cores: Florence Breton
Ano de publicação: 1997

“Um jogador profissional abatido nas costas”, anuncia a edição especial do “Tombstone Epitah”. Nada fora do comum, exceto por um detalhe: o jogador se chama Blueberry, uma verdadeira celebridade, após a chegada do gordo Campbell, jornalista de Boston.

Mas, com três balas no corpo, Blueberry não está morto. E quando ele abre um olho, Campbell precipita-se à sua cabeceira para recolher suas memórias. Ele começa mal: a primeira façanha do “herói” do Oeste consiste em tomar um porre, chafurdando na lama com os porcos...

Durante esse tempo, Strawfield fez, em alarde, a partida, para Tucson, de seu comboio de prata, que os Clantos planejam atacar, disfarçados de Apaches. E enquanto a sombra de Gerônimo vagueia nas colinas, o drama se tece: ele conduzirá ao famoso massacre do O.K. Corral.

“Ombres sur Tombstone”, que foi o objeto de uma pré-publicação estival no jornal “Le Monde”, é construído sobre um desafio: o herói, colado a uma mesa de jogo em “Mister Blueberry”, passa esse episódio pregado na cama. Isso não impede que Giraud, sozinho no comando, após o falecimento de Jean-Michel Charlier, de levar a ação virtuosa, com sua tribo de personagens irresistíveis e sua dose habitual de humor. Quanto ao desenho, ele está à altura da reputação do Mestre até nos mínimos recantos da decoração – do pequeno interior agradável de Ma Clanton à parte superior da cama do herói. Tudo serve para uma bela definição de cores assinada por Florence Breton.

Fonte: Dargaud Éditeur, Paris, França.

A série “Blueberry” foi criada por Jean-Michel Charlier e Jean Giraud.
Blueberry. Ombres sur Tombstone © Jean-Michel Charlier, Jean Giraud, Dargaud Éditeur 1997

O álbum “Sombras sobre Tombstone” foi publicado, no Brasil, pela Panini Comics, em um díptico com “Mister Blueberry”, o álbum anterior. As duas histórias, juntamente com “Gerônimo, o Apache”, “O.K. Corral” e “Dust”, integram o Ciclo Mister Blueberry, também chamado de Tombstone, e O.K. Corral, cujo foi escrito e desenhado por Jean Giraud, que levou dez anos (1995-2005) para concluir o último ciclo de Tsi-Na-Pah.

Em 2007, foi lançado “Apaches”, álbum fora de série, cujo reuniu as memórias de Blueberry, narradas nos cinco volumes do Ciclo do O.K.Corral, acrescidas de páginas e quadrinhos inéditos. A história se passa antes do Tenente Blueberry ir para Forte Navajo, sendo, portanto, anterior às aventuras narradas na série “Blueberry”.

“Apaches” termina com Mike se despedindo de Caroline Younger, junto ao túmulo da jovem moça, como se antecipasse a despedida de seu criador gráfico, que ocorreria cinco anos depois, em 2012, com a partida de Jean Giraud para as pradarias celestiais.

Afrânio Braga

Edições do grupo Média-Participations na Livraria Amazon Brasil

Editora Mythos


Editora Trem Fantasma


Jean Giraud e Blueberry.


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